A crisálida




       Dotada dum envolvente e sufocante, a ponto de ser quase tangível, calor, aquela noite de ar sinistro encontrava-se tomada por uma névoa cinza-azulada que era densa num momento e rarefeita noutro, a ruela de métricas pedras brancas sendo constantemente atravessada por uma mesma fila indiana de cinco gatos cinzas com listras pretas.
       Em determinado momento, a névoa rarefeituou-se por um tempo longo o bastante para permitir que se pudesse observar melhor os cinco transeuntes felinos. Não mais atravessavam a rua como se não tivessem mais nada a fazer além disso. Três deles estavam sentados na calçada suja de poeira, folhas e líquidos, enquanto os outros dois andavam em círculos, um atrás do outro, no meio da ruela.
       Ao aproximar-se deles, veio a constatação, acompanhada da sensação de que isso sempre fora sabido, de que dois dos gatos sentados e os dois circundantes eram, na verdade, quatro grandes panteras mais pretas que o próprio céu noturno, enquanto o restante nem sequer era um gato, mas sim uma pálida menininha loira usando um surrado vestido róseo quase branco e cujos olhos encontravam-se ocultados por uma venda branca encardida.
       Os dois grandes felinos que antes circundavam o vazio no meio da ruela passaram a rodear quem havia se aproximado deles sem que tal pessoa sequer tivesse percebido quando isso se deu. Enquanto isso, as outra duas panteras puseram-se a rugir forte e ininterruptamente, abrindo as suas bocarras cada vez mais e mais, até chegar ao ponto em que as escancararam irreversivelmente, suas mandíbulas, juntamente com suas aveludadas peles pretas, escorregando feito roupa afrouxada e revelando duas grandes e róseas aves de comprido bico fico e pernas longas.
       Isso era uma coisa tão, mas tão abismantemente absurda, que quase não percebeu as duas panteras circundantes desvencilhando-se de suas peles, as quais caíram vazias ao chão da ruela branca ao mesmo tempo em que delas saíram dois bandos chilreantes de aves azuis e pequenas feito borboletas, as quais se mantiveram voando de modo a formar um círculo dentro do outro acima da cabeça daquela pessoa que as observava com pasmação.
       E, ao perceber que a menininha não mais estava no mesmo lugar de antes, assustou-se ao dar-se com ela bem no seu lado direito, o rosto diretamente voltado para o seu e uma lanterna antiga, suja e apagada na mão esquerda. Mão essa que ela ergueu até acima da própria cabeça, deixando-a bem de fronte aos olhos de sua presa.
       Dentro daquele estranho artefato de aparência chinesa, havia dezenas de pequenos insetos que se moviam velozmente dum lado para o outro sem emitir qualquer zumbido. Então, pararam. Por três vezes, um brilho esverdeado surgiu e eles voltaram a se mover. Novamente pararam e começaram a emitir um tímido brilho esverdeado até que, gradualmente, uma forte e ofuscante luz esmeralda eles se tornaram.
       Enlameado, nu, com todos os pelos do corpo completamente raspados e dispostos ao seu redor, Eberto acordou deitado no centro dum terreno baldio completamente entregue ao mato e ao lixo, sem que qualquer lembrança do dia anterior existisse em sua mente.





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Conto escrito em algum momento de 2010, em Santana-AP, tendo sido publicado no meu antigo blog em 05 de março de 2014 e reescrito em 01 de outubro de 2017.





Ilustração:

A imagem escolhida para ilustrar este conto pertence à carta de Magic: The Gathering chamada "Casulo Primordial" (Primal Cacoon), de autoria de Daniel Ljiunggren.

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