A fumaça laranja



       Através do espelho do guarda-roupas de seu quarto, ele, enfim, pode ver o que incomodava o seu olho e, após retirar os dois cílios caídos, notou que o reflexo da janela situada atrás de si exibia, ao longe, para além do muro do quintal, uma alta e densa coluna de fumaça alaranjada. Virou-se para olhar melhor e, por fim, decidiu subir no muro, apenas para, um vez sobre ele, descobrir que pouco podia ser visto dali, não tendo dúvidas em descer e ir até o local usando sua bicicleta azul.
       Pedalando a toda velocidade pelo quarteirão enquanto distintas matilhas de cães vagavam livremente e gatos-vaca percorriam os muros e telhados, percebeu que já estava na rua não asfaltada apenas quando um carro incrivelmente veloz, silencioso e surgido do nada quase o atropelou, fazendo-o perder o controle da bicicleta e cair na área larga que dividia tal rua em duas mãos, área tomada pelo mato.
       Dali, mesmo sentado no mato, percebeu que era bastante visível o lugar donde se erguia a coluna fumácea: uma esquisita plantação pela qual tinha certeza de já ter passado variadas vezes, nas quais sempre se deparou com um gorducho senhor vestido como lorde, que não sabia ao certo se o conhecia ou não, bem como se lembrava, ainda que a certeza de isso realmente ter ocorrido ser quase nula, de sempre perguntar a tal homem o que estava plantado naquele campo, sem que obtivesse qualquer resposta além do silêncio.
       Uma vez em pé, sem que sequer tivesse tirado a terra que o cobria, é que fora levantar o seu veículo não motorizado e acabou dando pela sua falta. Quase em desespero, pôs-se a olhar ao redor, até que viu ao longe, vindo da mesma direção onde se erguia a coluna de fumaça, uma senhora de idade muito avançada andando numa bicicleta, que, embora preta, deixava à mostra a sua cor original por debaixo da pintura mal feita.
       Então, ele esperou até que chegasse perto, mas quando a mesma estava ao que deviam ser dois metros de distância, um pé-de-vento lançou poeira nos seus olhos, forçando-o a fechá-los. Quando, enfim, voltou a enxergar, a velhinha desaparecera. Havendo apenas a alternativa de andar, conformou-se e andou rumo ao aparente incêndio.
       Enfim, chegando ao local que de longe vinha observando se desfazer em fumaça de cor laranja, ele pôs-se a admirar a beleza daquilo, demorando a notar a ausência de qualquer fogo ou calor. Ao olhar para o céu sobre a sua cabeça, viu três círculos formados por aves pretas, um mais alto que o outro, com o de cima rodopiando em sentido distinto ao de baixo. Foi então que, por um momento, a hesitação surgiu em seu coração, mas o desejo por adentrar na plantação e descobrir o porquê da fumaça sem fogo foi mais forte.
       Já dentro da plantação, percebeu que ela era como um milharal esparso e misto com bambuzal, bem como que havia estreitas trilhas. Em dado momento, após muito andar sem que sequer chegasse perto da coluna de fumaça, viu-se numa bifurcação: um caminho aparentemente tortuoso levando até uma construção inacabada, por detrás da qual saía a coluna fumácea e um caminho reto até um matagal onde havia um poço pétreo com uma tampa quadrada de madeira à sombra de uma árvore de tronco robusto e franzinos galhos seminus. Optou pelo primeiro.
       E, pelo caminho de curvas, recortes de revistas e jornais encontravam-se espalhados por todo o solo enlameado, eles exibiam imagens ilustrativas de naves espaciais e alienígenas. O silêncio era imenso e perturbador. As portas e janelas da construção, no térreo e no primeiro andar, estavam bloqueadas pelo lado de dentro por pilhas de tijolos. Repentinamente, o estalido de dezenas de asas batendo simultaneamente fez-se ouvir e várias aves pretas surgiram dentre a plantação em direção ao céu azul, assustando o jovem e pondo-o a correr para longe da obra inacabada.
       Ele assustou as aves e elas a ele. Voavam sobre o mesmo como se o perseguissem e ele corria como se buscasse alcançá-las. Atrás deles, tudo desaparecia, o chão que tão logo fora pisado era engolido pela densa escuridão, tal qual o céu ao fundo, a plantação, a construção, a fumaça laranja. Parecia que o jovem e as aves fugiam disso, mas sequer davam conta do ocorrido.
       Por fim, as aves pretas ultrapassaram-no e se empoleiraram nos galhos franzinos e seminus da árvore de tronco robusto ao lado do poço, contrastando com a gigantesca nuvem branca ao fundo, no céu, e as flores vivamente amarelas nas pontas dos ramos. Pareciam sinistros frutos estragados e crescidos contrariamente à lei da gravidade. Ele parou de fronte à árvore guardiã do poço e a escuridão cessou seu avanço. Foi quando uma ave preta subitamente caiu no tampado poço feito fruto maduro e tudo escureceu. Quase que imediatamente, a moça acordou ofegante e empapada de suor em sua cama.





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Escrito em algum momento de 2010, em Santana-AP, com revisão e acréscimos em 03 Mar 2014 e, agora, em 29 Set 2017.





Ilustração:

A imagem escolhida para ilustrar este conto, que não foi o meu primeiro, mas um dos que sobreviveram, é um recorte de um registro fotográfico de um incêndio que atingiu uma fábrica de fertilizantes em São Paulo no começo de 2017.

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